Dona Bia e parte da produção do próprio quintal

Por Eraldo Paulino, Gina Sena e Lorenza Strano

O Semiárido é um lugar de desafios, mas é também morada de muitas virtudes e oportunidades. E foi no movimento de aprender e reaprender a conviver com o Sertão cearense que Maria Gonçalves Lima (“Dona Bia”) e Leandro Cavalcante criaram, junto com os filhos, um verdadeiro laboratório de saberes científico e popular no próprio quintal da casa onde moram, em Malhada dos Malaquias, município de Quiterianópolis, na região cearense dos Inhamuns. Em meio a tantas transformações, Dona Bia, que durante muito tempo carregou água em um balde na cabeça por até dois quilômetros, lembra que conheceu a coordenadora da Cáritas Diocesana de Crateús (CDC), Francisca Erbênia de Sousa, Quando recebeu uma cisterna de primeira água, em 2002, tecnologia que na época raras famílias possuíam. A partir daí muitos benefícios vieram: quatro dos cinco filhos do casal ingressaram na Escola Família Agrícola (EFA) Dom Fragoso, em Independência (CE), de onde trouxeram um novo olhar para a forma de produção no Semiárido. Não por acaso, atualmente, ela é uma das principais referências de agricultora experimentadora acompanhada pelo Projeto Paulo Freire, que é realizado pela CDC e tem financiamento do Governo do Estado do Ceará e do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA)

Dona Bia é a síntese da força e da sensibilidade do povo sertanejo. Já era assim quando casou com Leandro, mas passou a ser admirada pela comunidade quando o companheiro sofreu com problemas de saúde que o impediam de trabalhar. Sozinha, praticamente, ela continuou produzindo e garantindo o sustento da família, além de fazer enorme esforço para manter os filhos que um a um foram estudar na EFA. A partir dos conhecimentos adquiridos lá, e posteriormente na Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), em Mossoró (RN), onde o primogênito Lucieudo Gonçalves estudou, os filhos se juntaram a outros egressos da  escola de Independência e criaram o Instituto Bem Viver, que faz como opção dialogar com os saberes populares das comunidades camponesas e partilhar tecnologias de convivência com o Semiárido.

Foi assim que o quintal da família recebeu um dos primeiros sistemas Bioágua Familiar do Ceará, que reaproveita águas despejadas da lavagem doméstica para produção de frutas e hortaliças. Desta forma, quando o Projeto Paulo Freire contemplou a comunidade Malhada dos Malaquias entre as 702 famílias beneficiadas com Plano de Investimento, no município de Quiterianópolis, naturalmente o quintal da família já era uma referência para as vizinhas e os vizinhos. E apesar dos conhecimentos adquiridos pelos filhos e partilhados com a comunidade, a figura matriarcal de Bia, por tudo que fez e tudo que é, acaba sendo o grande referencial para o povo camponês de Malhadas dos Malaquias e região.

Gina Sena, Bia Gonçalves e Mirna Sousa, Projeto Paulo Freire em comunidade.

Um novo ciclo

O Projeto Paulo Freire garantiu a Bia e família a implementação de um aviário, para contribuir com a ampliação da produção de aves, substituindo o que já havia por lá, mas precisava de reformas. “Estou muito feliz com a casinha pras minhas galinhas, agora tenho de novo onde criar, pros bichos não pegarem elas”, comemorou. Além desta cultura, a família também trabalha com a criação de abelhas, ovinos, suínos, e, graças ao Sistema Bioágua, consolidou um diversificado quintal produtivo associado à agrofloresta, de onde tira boa parte dos alimentos utilizados no próprio consumo, e comercializa o excedente. “O acompanhamento técnico do projeto Paulo Freire ajuda demais a deixar isso tudo aqui ainda mais bonito”, reconhece Bia.

Seguindo a filosofia freiriana, como o nome do projeto sugere, quando as técnicas e os técnicos do Projeto Paulo Freire vão às comunidades desenvolver os trabalhos, jamais se parte do princípio que nessas localidades haverá pessoas desprovidas de conhecimentos ou experiência. O que há é uma troca de experiências e saberes, para potencializar, ampliar, dar concretude a sonhos que só se tornam realidade se sonhado com mais gente. Dona Bia, por sua vez, tem um laboratório no próprio quintal que muitos engenheiros agrônomos sonhariam ter, mas até pelos filhos a quem proporcionou estudos como uma heroína que é, com todo sacrifício, e pela própria hospitalidade que lhe é abundante, ela não só reconhece a importância da assistência técnica rural, como se dedica para colocar em prática tudo de novo que aprende.

Dona Bia e o aviário conquistado

Espírito de Liderança

O conhecimento sobre agroecologia, a necessidade de preservar a natureza enquanto lugar comum para garantir uma produção verdadeiramente sustentável, logo fez despertar em Bia um espírito de liderança, para defender os princípios que ela passou a acreditar. Em 2005, por exemplo, foi uma das fundadoras da Associação Comunitária Nascente do Rio Poty, criada com intuito de fortalecer a unidade das famílias em defesa de direitos, mas principalmente para preservar a nascente do único rio federal do Ceará, de extrema importância não só para a população e o meio ambiente local, mas para vários municípios cearenses e piauienses.

Graças a esse espírito de Liderança foi possível criar o grupo Mulheres Construindo Bem Viver no Semiárido em Malhada dos Malaquias, como uma estratégia para fortalecer o associativismo e o empoderamento de mulheres camponesas. “Na época, eu escutava o povo falando que só entravam se a Bia entrasse”, brinca. Mais recentemente, Dona Bia passou a integrar outro grupo formado por 18 “Mulheres Agricultoras Experimentadoras da Caderneta Agroecológica”, na região dos Inhamuns, que é voltado para que mulheres fortes como ela possam ter esforços e realizações devidamente registrados por elas mesmas, para que se tenha elementos concretos para provar como as mulheres do campo são extraordinárias.