Print do site do Corriere dela Serra, no qual se pode ver uma das fotos de Fabio Lovino
As mulheres de Crateús estão mais famosas do que nunca. No mês das mães, que é celebrado na mesma época também na Itália, uma série de produtos darão voz às mulheres do Semiárido Cearense lá na grande bota. Um dos mais importantes jornais do mundo, o Corriere della Sera, publicou no último domingo (03/05) parte de uma reportagem especial, escrita por Emanuela Zuccalà, no caderno Io Donna – que é voltado exclusivamente para as mulheres. Este texto está disponibilizado abaixo com livre tradução e adaptação. A matéria completa estará no livro Mothers (mães). O amor que muda o mundo: um projeto fotográfico por Fabio Lovino, com a colaboração de Roberta de Fabritiis e promovido pela We World para contar o compromisso a favor de mulheres e crianças no Brasil, Nepal, Benin, Camboja e Itália. De 6 a 16 de maio, as imagens de Mothers serão expostas na Estação Central de Milão, e o dia 16 chegarão na Câmara dos Deputados da Itália.
Brasil, o grupo de mulheres agricultoras com irmã Erbênia
Numa das áreas mais pobres do Brasil, as agricultoras tentam escapar da pobreza com a ajuda de uma ONG italiana, WeWorld, e uma mulher, Erbênia.
Texto de Emanuela Zuccalà
A menina de calça jeans poderia ter 17 anos. Ao pôr do sol um homem a puxava na beira da estrada, arrastando-a nos arbustos. Na manhã seguinte a calça jeans e o tope claro estavam balançando, rasgados, de cima de um arbusto; sobras obscenas de uma criminosa refeição. Erbênia tinha visto, tinha corrido para pedir ajuda. “Ela é uma prostituta, o que você se importa?” As respostas unânimes. E a jovem desfigurada pelo medo e que ela não tinha conseguido salvar da morte, durante anos visitou seus pesadelos. Mas a decisão já estava tomada: desistir da família e do namorado para se tornar uma freira e ajudar as mulheres que sofrem e também tratando ela mesma do trauma da impotência.
Erbenia de Sousa tem 50 anos, mas parece não ter essa idade. Magrinha, um sorriso luminoso, roupa simples e um pequeno sol de madeira no pescoço. Nós a encontramos no Nordeste do Brasil, na cidade de Crateús: o coração do Sertão Semiárido narrado por João Guimarães Rosa, o Céline brasileiro. Aqui a seca crônica persegue os camponeses já atingidos pelo monopólio dos latifundiários, e se a chuva vem é violenta, apressada, incapaz de ser absorvida por um terreno destinado à desertificação.
Crateús está localizada no Ceará, entre os mais pobres dos 27 estados brasileiros. Longe das luzes de outras partes do país-continente: 18 por cento de sua população está em situação de pobreza extrema, contra a média nacional de 6. Erbênia, filha desta terra adversa, tornou-se um símbolo da mesma. Desde 2005 lidera a Caritas local, uma instituição que emana da diocese, embora sua congregação religiosa não seja reconhecida pelo Vaticano. Foi o que aconteceu com algumas realidades ligadas à teologia da libertação, consideradas revolucionárias demais. Mas ela continua a se sentir irmã e prefere se definir de aventureira: está ao lado do histórico movimento dos Sem Terra nas ocupações dos terrenos baldios, apoia os acampamentos urbanos daqueles que pedem casa.
A freira alternativa não demorou muito para perceber que, para arrebatar as mulheres à violência, era necessário antes de tudo libertá-las. Acompanhá-las para fora da miséria e os túneis de uma sociedade machista, com base na “vocação da terra” que aqui permeia cada projeto. “Nós ensinamos para elas a fazer seus quintais produtivos, até os pequenos, cultivando milho, mandioca e plantas locais como o caju, fruta boa e nutritiva. Convencemo-las de que a Terra não é um lugar de dor, e que não devem se sentir inferiores porque são agricultoras”. A filosofia é a de Paulo Freire, o pedagogo dos trabalhadores.
O apoio vem da ONG italiana We World, que, no Nordeste do Brasil promove a segurança alimentar. O método é a agricultura familiar orgânica, ao contrário da química e intensiva dos latifundiários que coloca o país entre os primeiros no mundo na utilização de pesticidas e ogm. “Nós lutamos também contra a indústria da seca” precisa Erbênia. “Os fabricantes de reservatórios de água estão ligados aos políticos locais, impondo tanques de plástico a partir de 5.000 reais (1.500 €). Nós fabricamos cisternas de placa, mais ecológicas, a um terço do preço. Bloqueando aqueles que especulam sobre os pobres”. Erbênia viu a verdadeira fome: lembra-se de uma família inteira que ficou doente depois de ter comido carne de uma vaca quase decomposta encontrada na rua, a única refeição que podiam acessar.
“Assim morre a dignidade humana” comenta a freira, que agora ajuda 55 mil pessoas e tem orgulho de mostrar mulheres como Maria de Jesus, vigorosa com seus 67 anos: através da venda de frutas do seu quintal comprou novos terrenos e agora ganha 2.000 reais por mês (620 euros), quase três vezes o salário mínimo fixado pelo governo. Surpreendente é também a parábola de Antonieta, 46 anos e três filhos, que admite: “passávamos fome de verdade.” Nos leva para sua casa nos arredores de Crateús: tem cultivos de legumes, dois poços, um criatório de porcos. “Já não é mais escrava”, diz Erbênia.
O Nordeste do Brasil não é um lugar para as mulheres, com seus altos índices de violência baseada no gênero (6,9 feminicídios cada 100 mulheres, em comparação com uma média nacional de 5,2) e de gravidez na idade da adolescência. “Fomos capazes de reduzir de 60 por cento a migração de agricultores”, acrescenta Erbênia, “onde eles acabavam nas favelas entre drogas e prostituição.” Buracos negros como o Conjunto Palmeiras, entre as 580 favelas da cidade: em suas estradas de terra, poluídas pelos esgotos a céu aberto e pelos olhares bêbados de cachaça, a polícia chega para arrefecer os criminosos e nunca para prevenir. É o conto de Aurinelia, 37 anos, que parece estar vindo de outros mundos: entre uma gestação e outra conseguiu uma licenciatura em Pedagogia e ensina, mantendo os cinco filhos e o marido desempregado. “Se eu pudesse viver de poesia …” ela brinca com um suspiro, mostrando seus versos impressos em cordéis, os folhetos em rima. Mostra a mesma resiliência de Erbênia, que prefere a Bíblia à poesia: a investiga segundo uma chave de leitura feminina, em busca das mulheres protagonistas, e propõe essa leitura às mulheres. Semeando orgulho em quem achava que as grandes histórias eram feitas apenas por homens.