No início era só burocracia, falsas promessas e maquiagem, então a Câmara se fez povo e uma nova história de justiça está sendo escrita no município de Crateús (CE). Esse é o sentimento de centenas de pessoas que participaram da ocupação da Câmara Municipal de Crateús, que durou da noite do dia 26/11 à manhã do dia 07/12. O povo ocupou a Casa do Povo como um espelho poeticamente distorcido. Enquanto os vereadores foram intransigentes em não aceitar o clamor popular para redução do repasse do duodécimo, no percentual de 7%para 2%do que é mensalmente arrecadado pelo município, a população rebelou-se e decidiu também ser intransigente em defender que as leis injustas devem ser desobedecidas; enquanto os representantes do povo decidiram ignorar a voz do povo, os ocupantes fizeram nesses 10 dias, um verdadeiro exercício da democracia, onde a vontade popular deve ser o verdadeiro pilar da nossa sociedade.

Porém, as rádios locais (veículos de comunicação mais populares da cidade) estão entre as principais barreiras enfrentadas por este movimento, porque assim como ocorre em todo Brasil elas estão concentradas nas mãos de poucas pessoas e absurdamente são propriedade de políticos com cargo eletivo. Os vereadores Manoel Conegundes Soares e João de Deus fazem parte da mesa diretora da Câmara, que portanto são inimigos diretos da ação que a população de Crateús moveu, mas enquanto donos destes veículos de comunicação, cuidaram para atacar a nossa ocupação diuturnamente. Até tentamos usar o espaço radiofônico que nos permitiam, para restabelecer a verdade dos fatos, porém foi inevitável se espalhar muitas verdades sobre quem somos e o qual é a nossa verdadeira causa. Assim, no dia que decidimos “desocupar” a Casa (07 de de dezembro 2016), embora convictos da vigília permanente que nela faremos para assegurar um orçamento municipal plenamente participativo, há algumas dúvidas que possam ter surgido com todo o terrorismo midiático contra nós. Vamos tentar responder as principais.

Por que ocupamos?

Para responder a esta pergunta, com a permissão de você, leitor/ouvinte, queremos fazer outras perguntas. Você já leu algum panfleto, ouviu algum spot de rádio, viu algum outdoor ou qualquer tipo de divulgação da Câmara municipal de Crateús, que justifique o gasto no primeiro semestre deste ano, com comunicação no valor de R$ 190 mil (CENTO E NOVENTA MIL REAIS)? Por que há 54 assessores registrados na folha de pagamento desta Casa, se a maioria deles jamais foi vista prestando qualquer tipo de serviço em nome da Câmara? Esses são apenas alguns dos questionamentos que nos fizemos sondando o Portal da Transparência do município (ou seja, são números oficiais). Então concluímos que é imoral o Projeto de Lei Orçamentária de 2017, aprovado pela Câmara Municipal sem a devida consulta pública. É revoltante para qualquer pessoa de bom senso saber que, no período em que vivemos a maior seca dos últimos 100 anos e em plena recessão econômica nacional, a previsão  é que só no ano que vem sejam destinados vergonhosos R$ 4.325.500,00 milhões, além dos aumentos salariais de R$ 8 mil para R$ 10 mil, sendo que o presidente receberá R$ 18 mil, salário maior do que a remuneração do governador do Estado do Ceará.

Somos parte de uma febre que tem dominado várias cidades do Brasil (a paranaense Londrina e a cearense Iguatu, por exemplo), onde os vereadores sofreram pressão popular após aumentar os próprios salários e em seguida tiveram que reduzi-los. Mas sem falsa modéstia acreditamos que a nossa proposta vai além disso, porque um vereador poderia receber até um salário mínimo em folha, mas poderia ter acesso a um valor bem maior com estas manobras das quais suspeitamos. A nossa proposta é reduzir o repasse para a Câmara de 7% de tudo que é arrecadado em impostos por Crateús para 2%, o que está longe de ser pouco dinheiro, pois representa o valor anual de R$ 1,2 milhão, dinheiro mais do que suficiente para que eles cumpram as funções constitucionais. Cerca de 7 mil pessoas manifestaram apoio a esta causa com assinatura, mas temos certeza que a quantidade deste apoio seria muito maior se os vereadores fizessem um plebiscito para saber se a população concorda que os vereadores aumentem os próprios salários.

Desde o dia 07/11, toda segunda-feira fomos mais de mil pessoas diante e/ou dentro da Casa do Povo. Fomos algumas vezes ouvidos pelos vereadores, mas mesmo assim a maioria deles se considerou maior do que a vontade do povo. A gota d´água para nós ocorreu na sessão realizada no dia 26/11, quando a mesa diretora da Câmara ignorou não apenas a proposta do povo, mas também rejeitou projeto apresentado por um vereador da casa que propôs a redução para 5% (percentual proposto extraoficialmente pelos próprios vereadores no dia 08/11, inclusive). Alegaram inconstitucionalidade do referido projeto, arquivaram-no e sequer justificaram de forma embasada tal decisão.

Além do mais, declararam recesso parlamentar. Se voltássemos para nossas casas após essa afronta, engoliríamos essa derrota calados até o próximo ano, por isso fizemos uma assembleia popular logo após a sessão e decidimos ocupar a nossa casa, para seguir fazendo denúncias e pressionando para que o recesso fosse cancelado e a nossa pauta respeitada ainda por esta legislatura, não para a próxima, uma vez que é desta a atribuição de votar a Lei Orçamentária Anual de 2017.

O povo não pode ser ignorado pelos representantes legais do povo. Somos, inclusive, muitos de nós, eleitores dos vereadores que não nos atenderam. Diante de tamanho desrespeito, a real pergunta deveria ser: deveríamos nos calar?

Por que desocupamos?

Na manhã de ontem (06/12) o Ministério Público Estadual do Ceará, atendendo às nossas denúncias, executou a operação “Bamburral”, cumprindo mandados de busca e apreensão para averiguar e confirmar eventuais crimes de improbidade administrativa cometidos pelos “representantes do povo”. O objetivo foi recolher da própria Casa Legislativa e de mais quatro outros locais do município e capital (Fortaleza), documentos, computadores, celulares, e quaisquer tipos de provas que pudessem comprovar as irregularidades possivelmente perpetradas pelos vereadores. Nós consideramos tais ações uma vitória incrível, porque ela é o primeiro resultado concreto de nossas denúncias, que foram plenamente acolhidas pelo MPE, e agora são caso de polícia.

Ontem à tarde o Ministério Público procurou nosso movimento e propôs para que desocupássemos a casa, sob o argumento de que as medidas de moralização estavam sendo tomadas, com o compromisso de que o MPE estaria de olhos abertos para com a legalidade e moralidade dos atos do nosso Parlamento local. Assim, concluímos que a nossa missão de defender o povo foi cumprida, e não termina com mais uma ocupação/desocupação, a qual foi apenas instrumento para alcançar a justiça social.

De nossa parte, avaliamos que nosso movimento é histórico, e que foi um grande retalho para a construção de um tecido social mais justo. Ademais, a mesa diretora é composta por vereadores reeleitos, e que portanto gozarão do aumento votado por eles próprios. Sendo assim, não é estranho que eles não tenham cedido à pressão popular, embora seja um comportamento absurdo e imoral. Portanto, se após 7 mil assinaturas, e pelo menos 4 sessões lotadas por no mínimo mil pessoas pressionando pela redução do repasse, depois de uma ocupação histórica com amplo apoio popular, os vereadores se mantiveram na inércia e intransigência, decidimos desocupar de forma pacífica, se propondo a executar novas estratégias de luta e torcer para que os vereadores corruptos sejam punidos, caso comprovada improbidade administrativa.

Mas fizemos a desocupação respeitando a moralidade e a decência que nos move. Na manhã de hoje realizamos a Missa da Esperança em frente à Câmara, presidida pelo padre Helton e concelebrada pelos padres Maurício (Ararendá) e Géu (Independência). Lá foi feito envio do povo para seguir monitorando a Casa do Povo e sendo um calo insuportável nos sapatos de qualquer pessoa que queira fazer uso indevido dos recursos públicos. E depois lavamos a casa, limpando simbolicamente toda sujeira que queremos de lá expulsar definitivamente. Mas vale ressaltar que não saímos de lá escorraçados pela polícia, como talvez quisessem os inimigos do povo, mas de cabeça erguida, de maneira civilizada, apresentando inclusive para o presidente da Câmara, João de Deus, como deixamos tudo que nós utilizamos intacto e mais limpo do que encontramos, porque a gente sabe a importância de cuidar bem do que é nosso.

Curiosamente, durante o processo de reintegração de posse voluntária, o vereador João de Deus cobrou do oficial de justiça que o povo ocupante da Casa do Povo fosse identificado, como previa o mandado. Entretanto, o oficial disse que nós não estávamos cumprindo ordem judicial alguma porque dela jamais fomos notificados, inclusive. Mas mesmo assim resolveu fazer as perguntas que citava o documento. “Quem está ocupando a Câmara?”, perguntou. “O povo”, respondemos. “Quem é o líder da ocupação?”, perguntou de novo. “Jesus Cristo”, respondemos em coro. “Qual a finalidade do movimento?”, questionou por último. “Justiça”, sentenciamos. Assim saímos de lá, com o vereador com cara feia, sem prestar ou responder a qualquer cumprimento mínimo de qualquer pessoa minimamente educada, talvez por estar sendo investigado pela justiça, e nós voltamos à nossa rotina satisfeitos, cantando, brincando, gritando palavras de ordem, convictos de que nossa luta está apenas começando, é verdade, mas já começou muito bem.

Invasão não. Ocupação.

Somos crianças, mulheres, homens, pessoas idosas, jovens, filiados em partidos adversários politicamente, gente que milita há anos, gente que debutou nesta luta, gente que sobrevive com menos de um salário mínimo, empresários bem sucedidos. Somos de movimentos sociais ou não. Somos católicos ou não. Somos o povo. O povo ocupou a Casa do Povo não só de forma pacífica, ocupou de forma poética, de forma plena. Aquela casa manchada não só por infiltração decorrente de reformas mal feitas, mas também pela burocracia que gera impopularidade, jamais foi vista pelo povo como casa. E nestes 10 dias ela foi não só literalmente a nossa morada, foi também espaço para o povo fazer o que gosta e julga importante: debatemos, discordamos, concordamos, dançamos, cantamos, nos unimos em torno do que realmente nos importa: justiça.

Mesmo que as rádios tivessem espalhado terrorismo diariamente sobre nós, quem participava da ocupação, seja acampando, seja indo prestar apoio através de palavras ou gestos, seja por turmas de estudantes que nos visitaram, todos sentiam que lá também era cassa deles. Lá não havia um presidente ou uma mesa diretora com poder de se esconder atrás de uma burocracia, lá a única coisa acima de todos nós era a vontade comum de todos nós, e para ela vir à tona de forma plena nenhuma voz foi jamais silenciada, nenhuma revolta foi jamais calada, nenhuma mentira foi velada. Missa, noites culturais, oficinas, conversas, abraços… muita energia positiva, energia popular, do que o povo tem de melhor está impregnado eternamente entre aqueles muros projetados para ar condicionado, não para o Sertão onde orgulhosamente vivemos.

A nossa ocupação foi e eternamente será gravada na história de Crateús como um mandacaru. Para uns leigos, uma planta espinhosa e perigosa, para outros, para os que realmente conhecem o chão onde pisam, um ícone de resistência.