Na última semana, de 28 a 30 de junho, foi realizado em Crateús o III Seminário Interestadual de Pescadores e Pescadoras do Semiárido Brasileiro, com tema “Segurança alimentar e a pesca artesanal em tempos de pandemia”, numa realização da Cáritas Diocesana de Crateús, através do projeto Pescadoras e Pescadores Construindo o Bem Viver nos Sertões de Crateús e dos Inhamuns, em parceria com o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e o Movimento dos Pescadores e das Pescadoras (MPP).

O objetivo do evento foi promover um debate relacionado ao cenário da pesca no Semiárido Brasileiro, trazendo informações sobre os prejuízos provocados pelas mudanças climáticas e pelas violações dos direitos humanos nas comunidades tradicionais pesqueiras – situações agravadas no último ano de pandemia. Houve a participação de representantes dos estados do Ceará, Piauí, Pernambuco e Espírito Santo. Todos e todas testaram negativo para Covid-19 nas 24h antes da realização do evento.

Nas diversas rodas de conversa, as e os participantes tiveram a oportunidade de partilhar a diversidade de manejo e de desafios envolvendo a pesca em açudes e no litoral. Depois de um ano e meio de atividades, reuniões e ações virtuais, o seminário representou uma luz de esperança, o aconchego dos reencontros, além de um momento de articulação política para encaminhar a luta comum dos movimentos da pesca artesanal.

Seu Cazim, pescador artesanal de Parambu e liderança do MPP/Ceará

ALGUMAS DAS AMEAÇAS À PESCA ARTESANAL

“Em 2015 houve uma tragédia em Mariana (MG), com o rompimento da barragem da mineradora Samarco que causou uma enxurrada de lama que chegou até o litoral de Espíritos Santos”, recordou Manoel Bueno, pescador do estado de Espírito Santo. Segundo ele, quando as grandes empresas chegam no Brasil, geralmente há uma audiência pública para tranquilizar a população sobre a falta de impactos ambientais, e caso haja consequências, eles garantem reparação. “Já vai para mais de sete anos, e até hoje a população local padece com as consequências dessa tragédia”, denuncia.

Por outro lado, Celeste de Sousa, pescadora do Delta de Parnaíba e liderança do MPP/Piauí, denuncia as invasões dos territórios pesqueiros por empresas de energia eólica, empreendimentos turísticos e latifundiários. “Duas comunidades vizinhas, no município de Parnaíba, são controladas por três grandes fazendeiros com laços de parentesco, que se consideram proprietários dos territórios e fazem parte da elite local há muitos anos”, explica Celeste. Segundo ela, em 2010 começou a implantação dos complexos eólicos nestas duas comunidades e a família invasora proibiu a entrada na área de instalação do equipamento eólico, localidade onde os habitantes tinham costume de entrar para pescar nas lagoas e pegar frutas nativas. “Depois da construção do parque eólico, havia a intenção de controlar o acesso dos moradores mediante o uso de carteira de identificação, porém a comunidade não aceitou e continuou entrando na área”, conclui Celeste.
Anos depois de esse episódio, os fazendeiros anunciaram a venda da área para a construção de um resort turístico, mas o movimento organizado pelos pescadores organizou uma grande manifestação e criou vários obstáculos, e até hoje as famílias seguem na luta pelo reconhecimento da posse da área em favor da comunidade.

A exploração de petróleo também foi uma pauta importante do seminário, pois representa a destruição dos espaços pesqueiros, que trouxe uma situação de insegurança econômica e alimentar por causa da significativa diminuição das espécies de pescado. “Os pescadores e as pescadoras artesanais têm se organizado, construído frentes de resistência e reexistência nesses contextos, concentrando todos os esforços para a manutenção, defesa e proteção dos seus territórios e de suas existências”, relata Ormezita Barbosa, secretaria executiva do Conselho Pastoral de Pescadores (CPP). Segundo ela, essas comunidades estão interligadas com um profundo reconhecimento dos espaços de pesca como locais sagrados, e esses modos de vida místicos, em completa harmonia com a água e a natureza ainda não são compreendidos pelo sistema capitalista.

LEI DA PESCA ARTESANAL

“Precisamos acabar com esse consumismo desenfreado e aumentar as práticas de Bem Viver na relação com a terra, as águas, a fauna, a flora e, especialmente com as comunidades tradicionais”, defende Adriano Leitão, agente Cáritas e coordenador do Projeto Pescadores e Pescadoras Artesanais. Segundo ele, em 2013 a Cáritas Diocesana de Crateús começou um processo de aproximação às comunidades pesqueiras, muito invisibilizadas naquele tempo, e deu continuidade com o projeto atual. Desde então foram apresentados ao poder público de sete municípios da região Projetos de Lei da Pesca Artesanal, centrados em medidas de proteção social aos pescadores e às pescadoras artesanais e também da pesca em si.
Tais projetos buscam criar condições institucionais para que esta atividade continue existindo de forma sustentável. “Até hoje foram sancionados quatro projetos e essa mobilização é uma coisa inédita, pois tanto nos Sertões de Crateús e Inhamuns quanto em todo o estado do Ceará não existe um projeto de lei municipal que vise a proteção dessas populações”, explica Adriano.

Manoel Bueno, pescador artesanal e lideraça MPP/Espirito Santos

Maria Celeste Sousa, liderança pescadora artesanal e liderança do MPP/Piauí

LANÇAMENTO DO RELATÓRIO DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS EM COMUNIDADES PESQUEIRAS NO BRASIL

Na segunda parte do Seminário, houve a apresentação do Relatório dos conflitos socioambientais e de direitos humanos, uma realização do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), que registra dados de 434 conflitos vivenciados por comunidades pesqueiras de 14 estados do Brasil. A publicação analisa dados levantados nos anos de 2018 e 2019 e 2020, tratando também sobre as consequências da pandemia da COVID-19 na geração de conflitos socioambientais nesses territórios.

“Essa publicação se configura como um esforço de reunir, organizar e analisar os conflitos que atingem as comunidades tradicionais pesqueiras e os impactos que colocam em risco o modo de vida dos pescadores e pescadoras artesanais e as lutas das organizações comunitárias”, relata Ormezita Barbosa. Segundo ela, além de apresentar os desafios, o relatório busca demonstrar as estratégias que as comunidades tem usado no enfrentamento desses conflitos, enfatizando um conjunto de ações de resistência, tanto no campo jurídico quanto na articulação política.

Texto: Angelica Tomassini. Revisão texto: Eraldo Paulino. Fotos: Mirna Sousa e Angelica Tomassini