Nos primeiros anos da década de 2000, o Semiárido testemunhava uma revolução em sua própria história. Milhares de famílias nas mais diversas localidades da caatinga e do cerrado brasileiro começavam a acessar água de qualidade para beber através da construção de cisternas. Uma tecnologia simples que abriu caminho para modificar a narrativa política que sustentou por mais de século a ideia de que o clima era responsável pela pobreza que assolava a região. O paradigma do combate à seca deu lugar à convivência com o Semiárido. E a sabedoria popular em relação à agricultura e à natureza foram sendo reavivadas e ganhando força novamente na identidade e cultura dos povos destes territórios do país.

Aqueles anos também foram de boas médias de chuvas no Ceará, o que aliou boa produção de alimentos pelos agricultores, melhora na qualidade de vida das famílias e um movimento de organização popular em associações e cooperativas para a comercialização de seus produtos. É neste cenário que surge a Feira da Agricultura Familiar e Economia Popular Solidária de Crateús e Inhamuns em 2005, idealizada e construída pela Cáritas Diocesana de Crateús, FETRAECE e Secretaria Municipal de Agricultura do município junto com agricultores e agricultoras familiares, artesãs e artesãos.

“Eu sou um dos promoventes da primeira vez”, afirma orgulhoso o agricultor Zé Maria, da comunidade de Santana, em Crateús, ao adentrar nas sensações que a memória o faz reviver. “Pra mim (a feira) tem muita importância. Tanto é bom pra minha saúde, como eu acho bom me dar com o povo, com os fregueses”, revela com a sua alegria característica.

A feira afetou e foi afetada por diferentes contextos climáticos e políticos, que foram dando a sua história a relevância alçada pela persistência e pelos objetivos mobilizados em sua construção.

A Feira acompanhou a fartura dos quintais produtivos da agricultura familiar com as várias tecnologias sociais que deram condições de armazenamento de água também para a produção. Isso se deu a partir de 2007 através dos programas de Convivência com o Semiárido estruturados pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). A cada novo mês de junho, agricultoras e agricultores da região já passam a ter como certo o espaço da Feira para a comercialização de seus produtos; o que continua se estabelecendo para mais e mais produtoras/es, não só dos sertões de Crateús e Inhamuns, mas de outras regiões do Estado, e mesmo de fora do Ceará.

Também foi testemunha da resiliência do povo do campo e, ela mesma, sinal de resistência quando se manteve viva em todos os sete anos de uma das estiagens mais rigorosas que o semiárido atravessou, de 2012 a 2018. Agricultoras e agricultores mantiveram suas produções, ainda que fragilizadas/os, e foram a força que sustentou a decisão de mantê-la.

Tal determinação foi sendo cultivada ao longo deste percurso temporal. Muito além dos dias que movimentam o território em junho, a feira se faz na construção coletiva ao longo de todo o ano, em encontros, reuniões e formações. Tão representativa que é, sua potência e significado se espalhou pela região em diversas feiras municipais mensais e anuais – tal como a grande Feira – organizadas pelas/os feirantes em suas localidades.

Novos tempos para fortalecer os propósitos originários

Nos dias 05 e 07 de junho, a Praça Gentil Cardoso – também testemunho de outros tempos e do ideal de um país sem miséria e injustiças com seu monumento à Coluna Prestes – se preparou para receber mais uma Feira.  Vários outros espaços de Crateús e comunidades de municípios da região ofereceram os ares e a movimentação que o território já conhece e abraça.

Foram mais de 350 feirantes, cerca de 30 entidades envolvidas na construção – entre organizações sociais, movimentos, instituições de ensino e poderes públicos -, e cerca de mil colaboradoras/es voluntárias/os.

Esse ano, o tema escolhido foi “O cuidado com a Casa Comum”. Da feira que se estabeleceu pela convivência com o Semiárido, pela agroecologia, pela agricultura familiar, pela economia popular solidária, pelo consumo consciente e justo e pela preservação da vida e da mãe terra, nada mais afinado do que esta temática para a edição celebrativa de quinze anos.

Por esta razão também se dá a sua realização todos os anos durante a Semana do Meio Ambiente, fazendo com que quem a constrói e quem participa não perca de vista a relação intrínseca da Feira com uma proposta de vida capaz de promover o equilíbrio na relação entre seres humanos e natureza.

Consciência ecológica se entrelaça com a solidariedade e a sororidade na história da artesã Nonata Linhares. Da aproximação com um grupo de mulheres articulado pela Cáritas de Crateús, ela se tornou voluntária, fez um curso de joias sustentáveis com reaproveitamento de garrafas e frascos de plástico e repassou o que aprendeu para outros grupos de mulheres. “O que me motiva é o amor pelo grupo, pelas coisas que a gente aprende a fazer e pela amizade”, revela quando questionada sobre seu estímulo para participar da Feira.

Maria Cilene, de Independência, é do time de feirantes veteranas e nunca deixou de participar de nenhuma das edições até agora. A produtora de remédios caseiros traduz um dos princípios da troca justa e solidária: “o intuito da gente vir pra feira não é só vender (…) É muito bom a gente vender e também comprar dos outros. A gente não querer só pra gente, a gente se unir uns com os outros”. Lição para os tempos de escassez e de abundância.

Depois do difícil período de estiagem, desta vez o inverno foi generoso. “Muita fartura da roça, do curral, tem de tudo aqui. Foi uma fartura este ano, graças a deus!”, comemora Zé Maria.

Para os novos tempos, o desafio contextual que se impõe à Feira é, acima de tudo, se manter como perspectiva mobilizadora das forças populares em torno da defesa dos modos de existência que promovam a vida, e que tanto diz sobre os princípios que guiaram o seu percurso até aqui.

Não é à toa que a cada ano novos grupos sociais se somam a esta ciranda popular para congregar lutas. Nesta edição, a Rede de Juventudes do Ceará realizou um intercâmbio de diálogo e articulação política sobre a realidade juvenil do campo e da cidade com a Rede de Jovens de Seridó/Rio Grande do Norte. Também houve troca das juventudes com outros grupos em encontros paralelos. A jovem Helena Soares, da comunidade pesqueira Caetanos de Cima, foi trocar saberes do seu território com os participantes na plenária do II Encontro Interestadual das Pescadoras e dos Pescadores Artesanais. Mulheres e grupos produtivos também ocuparam os espaços da Feira no III Encontro Nacional de Mulheres e no Encontro dos projetos de Economia Popular Solidária, ambos promovidos pela Cáritas Brasileira.

As trocas envolveram muitos outros atores nas oficinas, seminários e intercâmbios, como a categoria sindical das/os trabalhadoras/es rurais, as/os professoras/es e educadoras/es comprometidos com a educação contextualizada, as/os técnicos agrícolas, os/as guardiões/ãs de sementes crioulas, as/os médicas/os e as/os terapeutas comunitários, abrangendo uma gama imensa de conhecimentos a favor da vida. Uma ebulição produtiva se fortalece a cada edição da Feira.   

Na linha dos desafios que se transmutam, os cortes orçamentários e a desestruturação de muitos programas sociais relativos à convivência com o Semiárido e à Economia Solidária, além de toda a ameaça à qualidade da vida da população – desde a liberação de centenas de agrotóxicos até as reformas trabalhistas e previdenciárias, afetarão profundamente a realidade do Semiárido. Mas é justamente nos momentos mais críticos que a capacidade de resiliência é atestada. E o povo do Semiárido já ensina sobre isso há muito tempo.

Por Raquel Dantas, da Cáritas Regional Ceará.

Além dessas entidades,  participaram também a UECE, FAEC, UFC.

Fotos: Monaiane Sá e Lorenza Strano