O Bangu tem também como divisa da camisa:
                                                                                                                      O vermelho-sangue a brilhar.
 
– Seu avô, antes de torcer pelos “mulambos”, era torcedor do Bangu, cara. Lembro que ele me levava. Eu ainda pequenininho, para os jogos em Moça Bonita, inclusive, fui ver jogos do Bangu em Caio Martins e ia de barca com os jogadores. Seu avô me apresentou… tinha aquele goleiro… bom pra caramba, o…
 
Ubirajara!
 
Eu não tenho lembranças do pai do meu pai. Morreu sem caber em minhas memórias. Ficou em algumas fotos de recém-nascido – onde a gente nem se reconhece naquelas poucas carnes – e na imagem construída pelos minudentes relatos do meu pai e tios nos encontros domingueiros. Tinha 55 anos quando um infarto lhe roubou a vida.
 
Era filho de um italiano e baiana. Chegou ao Rio de Janeiro com 17 anos. Foi escrituário do Hospital Central do Exército e posteriormente Técnico em Raio-X no INPS. Desempenhou cargos políticos como secretário geral da associação dos servidores civis do Brasil, chegou a ser Brizolista, teve cinco filhos, dois casamentos e, até aquele dia, era flamenguista.
 
Um visitava breve ao Rio de Janeiro num julho frio, onde escapei do trabalho e da árida Fortaleza para meu recanto sonhado e idealizado, minha dívida eterna; o retorno à origem. Chuvoso e cinza, o Rio de Janeiro de Taquara, zona oeste, é meio serra, meio subúrbio, meio caos, mas só durante o dia. É parte do conglomerado de bairros que envolvem Jacarepaguá e tem um monte de portugueses ou filhos deles, aliás, portugueses e cearenses, haja vista a autopeças Tauá, em frente ao condomínio do meu pai.
 
Sempre que vou ao Rio busco dar vazão alguma coisa perdida da minha infância, uma infância que foi e não fui; em geral, sebos, lojas de discos, padarias com alguma iguaria  típica, um bar específico, o Maracanã, lojas do Flamengo. Confesso ter algum romance especial com alguns bairros do subúrbio, como Bangu, que além de ter um ar operário, que a cidade de serviços não permite mais, exibe o flerte com um Rio diferente, sem o charme francês da antiga burguesia, mas com um jeito industrial bretão, que reflete no nome do seu principal clube de futebol: Bangu Athletic Club.
 
Coleciono camisas de futebol; é uma benquerença pela minha infância.
 
Eu olhava o trem e via aquele aglomerado de pernas pra lá e pra cá, no sincopado ordinário da cidade. Bangu é cheio de gente. Enquanto olhava a engrenagem meu pai revelava “Seu avô era Bangu antes de ser mulambo”. Depois do susto – afinal, futebol é coisa séria – eu quis saber mais dessa aventura do meu avô por caminhos do futebol e afeto. Abriu-se, então, naquela tarde, uma cartografia lírica que passava pelo suburbano clube de futebol, seu bairro e uma genealogia da saudade de quem antecipou sua partida. Eu não perdi por W.O. 

Da esquerda para a direita, Paulo Borges, Cabralzinho, Norberto, Jair e Aladim, craques do Bangu de 66.

O Bangu de 1966 era um grande time, assim como suas versões anteriores, de 64 e 65, a base foi formada pelo técnico Tim, substituído pelo argentino Alfredo Gonzales. Um time extremamente veloz. Seus pontas, Aladim e Paulo Borges, eram um pesadelo para qualquer zaga da época. A dupla tinha a frente o inenarrável Ladeira, atacante decisivo, que ajudou o Bangu a ter impressionantes 50 gols na competição. Na zaga, o Touro Sentado, apelido delicado dado a Fidelis, que dispensa floreados – talvez não fosse um zagueiro refinado, mas era uma entidade mística que impunha respeito em campo. Liderando a zaga o Touro Sentado garantiu que Ubirajara só tomasse 8 gols na competição, não havia falha simbólica com o sólido Fidelis, que chegou a integrar o escrete canarinho de 66.
 
“Saímos um dia, estava meio chuvoso, fomos de barca para Niterói, com o time do Bangu, seu avô me levou pra conhecer um por um os jogadores, Ladeira, Paulo Borges, esse não era mole não, jogava muita bola, habilidoso, rápido, e tinha também um goleiro, era muito bom… esqueci o nome, porra…”.
 
Ubirajara Mota foi o goleiro do Bangu de 1959 a 1968, jogou ainda no Botafogo e no Flamengo, e chegou a ser convocado para alguns jogos da seleção. Arqueiro fundamental naquele ano, que fez história com a camisa alvirrubra, e mora no coração dos antigos banguenses. Naquela época os campeonatos estaduais tinham média de público muito altas e as decisões chegavam a levar mais de 120.000 pessoas ao Maracanã. Flamengo e Bangu, em 1966, contaram com um público de 143.978 torcedores.
 
Meu avô parece meu tio e meu irmão, vi por fotos. Baixinho e entroncado, um sorriso malicioso e uma cara arguta de quem sempre pensa com um passo a frente, assim eu o desenhava aos poucos, enquanto acessava na memória seus traços e construía a efigie de quem nunca vi, mas que tentei lembrar a vida toda. Nunca me deixei ser provocado por questões fundamentalmente genealógicas, sempre achei esse papo de ascendência uma coisa vaga, biológica, que era inevitável, mas nem sempre aceitável, afinal, convenhamos, por vezes é embaraçoso ter de conviver com um parente nefasto que nem em foto 3×4 assemelha-se a você. 

Moça Bonita

Chegamos a Moça Bonita, estádio do Bangu, e fomos direto para os portões que davam acesso ao campo. Tinham três caras cansados, olhando o tempo e se escondendo do sol. Bangu é quente. Perguntei pela sede do clube, disse que queria comprar uma camisa do campeonato carioca daquele ano. Um deles me guiou com apontamentos vagos até uma rua que ficava “logo ali”. Fomos desorientados, mas esperançosos, eu já estava com a barriga gélida, meio sem fôlego – sessões espíritas e futebol são coisas demasiadas para mim. A loja do Bangu era uma mercearia que entre bujões de água mineral, cartelas de jogo do bicho e uma diversidade de salgadinhos tinham penduradas camisas polo de R$ 29,90 e camisa do Bangu.
 
Acho que meu pai previa esse passeio quente. Desde antes, quando lhe falei da necessidade de comprar as camisas do América e do Bangu, ele insistiu, de forma tênue, mas contínua, na compra da camisa dos Mulatinhos Rosados, talvez, mas que uma viagem no tempo, meu pai, meu encontro, queria, através do verbo, encontrar seu espelho, aquele que tanto lhe faz falta, como ele um dia tanta falta me fará. Nosso futebol e afeto nascem nas perdas.
 
O Bangu enfiou três tentos no meu amado Flamengo, Paulo Borges destruiu a partida e fez um dos gols mais bonitos do Maracanã, dando dois chapéus, indo e voltando, no zagueiro Ditão e sem deixar a criança bater no chão, emendou no gol do Valdomiro, o então campeão sucumbiu ao Gigante do Oeste, segundo eles, o Verdadeiro Time do Povo, o Bangu foi campeão no dia 18 de dezembro de 66.
 
Quando voltei para o carro o assunto cessou, falamos de trivialidades e acho que senti meu avô ali do lado, numa tarde de quinta feira, vestindo um puído alvirrubro que lhe apertava na barriga, de sorriso sacana e encantado com os dribles do habilidoso Paulo Borges.
  
*Alexandre Greco é jornalista. Esta crônica entrou para o prêmio Unifor 2015, publicada somente em 2016.

PS: Se depois de ler este texto incrível você quiser saber mais sobre este jogo e este time históricos, dá pra sentir um pouco do gostinho neste vídeo, com uma parte da crônica de Nelson Rodrigues de brinde. Basta clicar AQUI.