“E foi assim que o operário
do edifício em construção
que sempre dizia sim
começou a dizer não”
(Vinícius de Moraes)

Como um simples tijolo pode parecer inútil se a gente não enxergar nele parte essencial de uma grande construção, não é possível construir um novo Semiárido, mais justo, sustentável e solidário, sem momentos como a reunião com pedreiros e pedreiras ocorrida na manhã de ontem (02/02), na sede da Cáritas Diocesana de Crateús (CDC). Foi tempo para partilha de experiências e aprendizagens, testemunhos e de apresentações entre trabalhadoras e trabalhadores que construirão as tecnologias sociais do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), que serão executadas pela CDC no termo de parceria com a ASA e MDS, com meta de garantir até julho 700 cisternas de placa com capacidade de armazenar 16 mil litros d’água para consumo humano. Serão beneficiadas famílias camponesas de cinco municípios da microrregião de Crateús (Nova Russas, Poranga, Ararendá, Ipaporanga e Crateús).

Participaram 39 trabalhadores/as do próprio território, conhecidos também como cisterneiros e cisterneiras. Algumas pessoas com mais experiência, outras começando agora. “O importante é haver harmonia entre os mais experientes e os que estão chegando”, Explicou João Jerônimo da Silva, coordenador técnico do P1MC e agente Cáritas. Segundo ele, a participação deles e delas, no processo de conquista de direito a água das famílias, precisa ser eficiente do ponto de vista da execução do trabalho, mas também generosa do ponto de vista do relacionamento com as pessoas envolvidas, sejam colegas de trabalho, animadores de campo e/ou as próprias famílias beneficiárias, num gesto comum que, inclusive, deve ser esforço de todas e todos nesta ciranda.

Serão construídas 100 cisternas de placa na primeira etapa do termo (80 em Nova Russas e 20 em Ipaporanga), até março. Após esse período, a ASA e a Cáritas aguardarão a liberação de nova parcela de recurso por parte do Governo Federal para seguir na mobilização, seleção e cadastramento das 600 familias, para assim alcançar a meta de construção das 700 tecnologias.

Operário em construção

Desde 1992 o pedreiro Valdeci da Silva Araújo, morador da comunidade Massapê, em Tamboril, constrói cisternas de placa. Antes de ser um programa federal, a sabedoria e a solidariedade dos povos do Semiárido já garantiam armazenamento de água da chuva para o consumo humano através dessa tecnologia. Por causa do custo considerável para a maioria das famílias (cerca R$ 2 mil atualmente), antigamente quem queria usufruir dessa tecnologia social, necessariamente precisava ter poder aquisitivo ou construí-la em mutirão.

Valdeci via, já naquele tempo, o trabalho que exercia ser fundamental para famílias de agricultoras/es familiares como ele. À medida que a ASA consolidou-se como promotora de resistência e conquistas no Semiárido Brasileiro, o já veterano trabalhador hoje vê a si e a categoria que representa como parte fundamental desse processo. “Aonde eu vou eu tento ajudar os companheiros a ter o mesmo compromisso que eu aprendi a ter. As pessoas precisam entender que o dinheiro empregado nas construções vem de nossos impostos, e tanto meus colegas quanto as famílias precisam se unir para que esse produto [cisterna de placa] seja para a vida toda”, argumentou Valdeci.

Para ele é uma honra poder trabalhar na melhoria de vida de famílias camponesas. Ao invés de estar em São Paulo, construindo edifícios de luxo para o qual dificilmente seria convidado a entrar depois de pronto, ele trabalha na própria região, edificando um reservatório d’água do qual ele próprio poderá beber, entre uma xícara e outra de café, sempre que voltar para visitar aquela família beneficiada.

 Sexo frágil não, preconceito forte sim

A timidez dificultou as primeiras palavras de Antônia de Maria Oliveira. Única pedreira presente no encontro. Moradora da comunidade Melancias, em Ipaporanga, ela porém respondeu rápido quando questionada se sofrera algum preconceito desde que começou a construir cisternas, em 2003. “Muito! Era a maior dificuldade as famílias aceitarem quando viam que a pedreira era mulher”, disparou. Encarar o desafio de exercer uma função imposta historicamente pelo patriarcado como “coisa de homem” não foi nada fácil, segundo ela. “Algumas vezes a gente teve que levar o meu certificado de capacitação, porque as pessoas beneficiadas não queriam mulher ali”, partilhou. Resistência semelhante ela e o grupo de mulheres que constroem cidadania através do P1MC no território enfrentaram dos ajudantes de pedreiros/as, inclusive.

Antônia de Maria construindo um Semiárido sem machismo

“Mas com o tempo as famílias foram aceitando. A gente pode até demorar um pouco mais pra terminar, mas entregamos com um ótimo acabamento. Depois as pessoas até ficavam alegres quando viam que era a gente”, se orgulha Antônia de Maria. Ela fez a capacitação em 2003, com um grupo de 16 mulheres. Atualmente só ela Marilene Alves atuam na microrregião de Crateús, porque as outras viajaram para outros estados, ou tiveram de se afastar por problemas de saúde. “Parece que esse ano mais uma mulher, a Antonieta, vai voltar a trabalhar, porque tá morando aqui de novo”, comentou.

A pergunta mais óbvia a ser feita, e a mais grosseira também, seria se ela tem dificuldade de exercer a função por ser mulher. Contudo, não é necessário perguntar. Permanecer exercendo uma função por 13 anos, sempre sendo chamada novamente, seja qual for a unidade executora do programa, já é a resposta que o preconceito precisa para silenciar de vez.

 

Por Eraldo Paulino, comunicador popular da Cáritas Diocesana de Crateús.