Foram 54 meses de uma aventura intensa e revolucionária compartilhada por 1.445 “Pescadoras e Pescadores Artesanais: Construindo Bem Viver nos Sertões dos Inhamuns e Crateús“, projeto que foi executado em 12 municípios: Aiuaba, Arneiroz, Catunda, Crateús, Independência, Ipaporanga, Nova Russas, Novo Oriente, Parambu, Quiterianópolis, Tamboril e Tauá. Cidades essas que contam com uma população de modo de vida tradicional, que sempre abasteceu a mesa do campo e da cidade com peixes de qualidade, mas que viviam um processo de invisibilidade com grave ausência de políticas públicas, especialmente para as mulheres, que em muitos casos nem se reconheciam como pescadoras.
Porém, após 114 formações modulares, 364 escolas de cidadania, 72 oficinas temáticas para mulheres pescadoras, 26 oficinas, além de um processo intenso de acompanhamento e de vivência de nossas e nossos agentes Cáritas no cotidiano dessas comunidades tradicionais pesqueiras, esse cenário começou a mudar, e já é possível enxergar sinais concretos disso. “Eu não me reconhecia como mulher pescadora. Meu esposo até se associou primeiro na associação, porque eu não sabia que mulher também tinha direito. Mas aí depois a gente se reconheceu como mulher pescadora e tenho muito orgulho, e gosto sim do que eu faço”, revela Flaviana Cavalcante, de Parambu. Quando o projeto iniciou, cerca de 54 mulheres participavam ativamente das associações e colônias dos territórios, e atualmente são 131, aumento de 142%. A participação em geral também melhorou, passando de 369 para 631 pessoas, um aumento de 71%.
Incidência política
“A gente era cego, porque não tinha quem mostrasse pra gente os caminhos, e depois que o projeto chegou, a gente começou a descobrir o que é melhor pra gente e a lutar por isso”, pontua Francisco das Chagas, conhecido como “Sorriso”, presidente da Associação dos Pescadores e das Pescadoras de Tamboril. Assim como ele, Rosângela Chaves, mais conhecida como “Rosa”, do município de Ipaporanga, exalta a importância das formações para que a comunidade pesqueira reivindique seus direitos. Ela foi uma das protagonistas de uma das oito mesas de negociação realizadas entre pescadoras/es e poder público, por incentivo do projeto. “O que eu mais gostei desse projeto foi quando a gente enfrentou o prefeito e a equipe dele, na mesa de negociação. Sempre eu fui assim muita aletrada como dizem né, e pra mim não foi muito difícil, mas o medo eu pudesse ter acabou ali”. comemora Rosa. Nessa mesa de negociação, realizada entre os moradores e as moradoras da comunidade São José e a equipe da Prefeitura Municipal de Ipaporanga, houve diversas conquistas, como o retorno da agente de saúde, a normalização da coleta de lixo e do atendimento médico.
Além disso, as pescadoras e os pescadores beneficiadas/os puderam participar de 03 Seminários interestaduais de articulação de pescadores/as de águas continentais do semiárido do Nordeste brasileiro; um seminário de mulheres das águas; um intercâmbio regional para mulheres pescadoras em Aracati, com foco na ressignificação e reutilização de materiais recicláveis; um Encontro estadual de articulação entre pescadores/as artesanais do Estado do Ceará; um encontro estadual com foco na atividade da pesca artesanal e impactos de grandes projetos econômicos; três encontros regionais sobre pesca e políticas públicas; sem contar quatro marchas para Brasília (três presenciais e uma virtual). Dessa forma, puderam expandir os horizontes, ter contato com outras realidades e com a dinâmica do movimento social. Um dos melhores exemplos disso é caso de Edcarlos Almeida, de Parambu, que faz parte da coordenação Estadual do Movimento Nacional de Pescadoras e Pescadores Artesanais (MPP), no qual não havia participação massiva de pescadoras e pescadores de açude até o início do projeto, e agora já são uma das grandes forças nacionais do movimento. “Eu agradeço muito ao projeto por me possibilitar entrar em contato com essa realidade. Já aprendi muita coisa desde que comecei a participar, e agora nós que pescamos nos açudes conseguimos nos sentir parte da sociedade, parte do movimento, e isso nos dá força”, agradece. Além do MPP, a Articulação Nacional das Mulheres Pescadoras, ANP, também conta com participação de representantes dos territórios acompanhados pelo projeto.
Mudanças Climáticas
Quando o projeto iniciou, a maior parte dos municípios conviva com a maior ou uma das maiores secas que se tem registro. A situação só não foi pior para o povo da cidade e sobretudo do campo, porque as tecnologias de convivência com o Semiárido já eram uma realidade. Porém, para pescadoras e pescadores, não ter água no açude significa dificuldade para encontrar a matéria prima fundamental do seu sustento, sem a qual até mesmo continuar morando em suas respectivas cidades se torna um desafio, provocando a migração de muitos deles e muitas delas. As reservas de água do estado do Ceará chegaram a estar em apenas 6% da capacidade, e não havia qualquer proteção, qualquer política pública que amparasse as comunidades tradicionais pesqueiras. A partir daí, o projeto passou a incentivar o público atendido a diversificar as atividades econômicas, com oficinas, mas também com a implementação de 26 sistemas Bioágua Familiar, que possibilita reaproveitamento de água despejada das lavagens domésticas para regar plantas frutíferas e legumes.
Outro ponto foi a proposição de projetos de lei a todos os municípios beneficiados com medidas protetivas para o meio ambiente, combate às mudanças climáticas, medidas para convivência com o Semiárido e criação de um fundo que ampare as famílias que venham a enfrentar situações de estiagem prolongada novamente. A lei já foi aprovada em cinco municípios: Crateús, Tamboril, Novo Oriente, Ipaporanga e Independência. “Essa lei é muito importante né, para amparar as famílias pescadoras, porque na época da estiagem que passamos, se tivesse tido uma lei dessa daqui, a gente não tinha passado por tanta dificuldade”, argumenta Cleidiane da Saúde, mais conhecida como “Preta”, de Crateús.
Comercialização
Um dos destaques do projeto foi trabalhar junto a pescadoras e pescadores estratégias de beneficiamento do pescado, discutir com o poder público medidas para melhorar a comercialização e a inclusão das pescadoras e dos pescadores em feiras da agricultura familiar. Houve pescadoras/es em quatro feiras regionais, além de participação em feiras estaduais e na Feira da Agricultura Familiar de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a maior do mundo. “Quando a gente chegou lá o povo não acreditava que existia pescador de camarão no Sertão. Muita gente nos procurou, e quando provou o nosso produto gostou e pediu mais. Foi uma experiência muito interessante”, conclui Luiz Delmiro, pescador de Arneiroz.
Vale lembrar que boa parte da execução do projeto atravessou a pandemia, e além dos processos de acompanhamento, de formação, a escoação dos produtos passou a ser um desafio, em tempos de comercialização virtual.
“A Cáritas passou a contribuir com as populações atendidas, produzindo peças de divulgação nas redes, assim como orientou as vendas por aplicativos. A situação prejudicou e muito essas famílias, mas as vendas online atenuarem a situação de algumas delas”, explica Adriano Leitão, agente Cáritas e coordenador do projeto. Segundo ele, mesmo atravessando essa enorme turbulência o projeto se encerra com um saldo positivo, uma relação estreita com essas comunidades que deve continuar, “porque na atual conjuntura em que estamos, só nos interessa avançar. Uma vez que trabalhamos na perspectiva da emancipação das sujeitas e dos sujeitos, essas próprias pessoas já não vão mais aceitar a realidade de descaso em que se encontravam quando o projeto iniciou”, acredita.